terça-feira, 22 de março de 2016

Missão do corpo

Claro que o corpo não é feito só para sofrer,
mas para sofrer e gozar.
Na inocência do sofrimento
como na inocência do gozo,
o corpo se realiza, vulnerável
e solene.

Salve, meu corpo, minha estrutura de viver
e de cumprir os ritos do existir!
Amo tuas imperfeições e maravilhas,
amo-as com gratidão, pena e raiva intercadentes.
Em ti me sinto dividido, campo de batalha
sem vitória para nenhum lado
e sofro e sou feliz
na medida do que acaso me ofereças.

Será mesmo acaso,
será lei divina ou dragonária
que me parte e reparte em pedacinhos?
Meu corpo, minha dor,
meu prazer e transcendência,
és afinal meu ser inteiro e único.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Alguém dentro de mim

Alguém dentro de mim
mente para me proteger.
Não sei quem tem razão
sobre meus desastres.
Se permaneci em excesso
e não varei a outra margem.
Se me deixei fora por muito tempo
e esqueci o endereço.

Quando estamos próximos de dizer
é que não estamos mais aqui.

VI

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na
sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las
pro chão, corrompê-las
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
usá-las como quem usa brincos.

Pergunto-te onde se acha a minha vida

Pergunto-te onde se acha a minha vida.
Em que dia fui eu. Que hora existiu formada
de uma verdade minha bem possuída.

Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada.

E a quem é que pergunto? Em quem penso, iludida
por esperanças hereditárias? E de cada
pergunta minha vai nascendo a sombra imensa
que envolve a posição dos olhos de quem pensa.

Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.
Vai redonda e alta
A lua. Que dor
É em mim um amor?...
Não sei o que me falta...

Não sei o que quero,
Nem posso sonhá-lo...
Como o luar é ralo
No chão vago e austero!...

Ponho-me a sorrir
P'ra a ideia de mim...
E tão triste, assim
Como quem está a ouvir

Uma voz que o chama
Mas não sabe donde
(Voz que em si se esconde)
E só a ela ama.

E tudo isto é o luar
E a minha dor
Tornado exterior
Ao meu meditar...

Que desassossego!
Que inquieta ilusão!
E esta sensação
Oca, de ser cego

No meu pensamento.
Na minha vontade.
Ah, a suavidade
Do luar sem tormento

Batendo na alma
De quem só sentisse
O luar, e existisse
Só p'ra a sua calma.

Luar póstumo

Numa noite de lua escreverei palavras,
simples palavras tão certas
que hão de voar para longe, com asas súbitas,
e pousar nessas torres das mudas vidas inquietas.

O luar que esteve nos meus olhos, uma noite,
nascerá de novo no mundo.
Outra vez brilhará, livre de nuvens e telhados,
livre de pálpebras, e num país sem muros.

Por esse luar formado em minhas mãos, e eterno,
é doce caminhar, viver o que se vive.
Porque a noite é tão grande... Ah, quem faz tanta noite?
E estar próximo é tão impossível!

Canção de outono

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão...

Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
-- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

domingo, 19 de julho de 2015

Panteão Nacional

Mercúrio, meu cabrão:
Tu que alinhaste a melena
de ouro em jeito de aviso
à queda, que penteaste teu
cabelinho todo para trás
antecipando o encontro:
Não podias ter soltado
pelo menos um conselho?
Meu grandessíssimo filho
de um deus velho, seu
moleque mimado: não
dava pra, sei lá, escrever
recado nos anéis do vovô
ou enfiar à socapa uma
mensagem no mapa
topográfico de Alicante?
Qualquer coisa servia, M.
Tu que puxaste o lustro
às sandálias e às asas
das tuas sandálias, que
ajeitaste o paletó de herói
e te lavaste os pés: tu já
sabias no que isso dava.
Meu grande sacana, tua
obrigação era subir na boca
de um megafone dourado
e dizer: "Cuidado rapaziada,
tenham atenção a esse nó
que acontece no estômago
no preciso momento em que
esperam por vosso amante
na pracinha junto à igreja.
Ou é úlcera ou é amor."

Brincando com dentes do tubarão

You are the sunshine
of my life
e conversar contigo de manhã
é tão bom
tens o poder do müsli e da
laranja
ou de qualquer fruta de época
for all that matters

Acompanhar teu percurso
natural
é muito bom
falar contigo
sobre tipos de alimentos
também

Neste começo d'hoje
tuas costas negavam
qualquer espécie de outono
Afinal
a ideia de estação
é só um tema ilusional
engendrado por humanos
que nunca puderam desenhar
tua coluna vertebral
a dedo nu

My dear bicho gente
veja lá se sua próxima visita
vem antes da edição fria
do Financial Times.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Acordar, viver

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Aparição amorosa

Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.

Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.

Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? A massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.

Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma ideia platônica no espaço?

O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.

Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.

sábado, 22 de novembro de 2014

Four Poems: IV / IV

IV / O Breath

Beneath that loved    and celebrated breast;
silent, bored really    blindly veined,
grieves, maybe    lives and lets
live, passes    bets,
something moving    but invisibly,
and with what clamor    why restrained
I cannot fathom    even a ripple.
(See the thin flying    of nine black hairs
four around one    five the other nipple,
flying almost intolerably    on your own breath.)
Equivocal, but what we have in common's    bound to be there,
whatever we most own    equivalents for,
something that maybe I    could bargain with
and make a separate peace    beneath
within if    never with.



IV / Fôlego

Sob aquele peito    amado e célebre,
calado, no fundo entediado    com veias cegas,
sofre, talvez    viva e deixe correr
o barco, sem    pagar para ver,
algo a mover-se    mas invisível,
e com clamor    só que contido
nenhum tremor    tudo tranquilo.
(Vê o voo fino    de nove pelos negros
quatro em torno de um    cinco do outro mamilo,
voo quase insuportável    no vento do teu próprio hálito.)
Ambíguo, mas o que temos em comum    tem que estar lá,
seja lá o que havemos de ter    entrar num acordo
um tratado de paz    debaixo
dentro dele já que    jamais com ele.

Four Poems: III / IV

III / While Someone Telephones

Wasted, wasted minutes that couldn't be worse,
minutes of a barbaric condescension. 
-- Stare out the bathroom wndow at the fir-trees,
at their dark needles, accretions to no purpose
woodenly crystallized, and where two fireflies
are only lost.
Hear nothing but a train that goes by, must go by, like tension;
nothing. And wait: 
maybe even now there minutes' host
emerges, some relaxed uncondescending stranger,
the heart's release.
And while the fireflies
are failing to illuminate there nightmare trees
might they not be his green gay eyes.



III / Enquanto Alguém Dá um Telefonema

Minutos perdidos, perdidos, não podiam ser piores, 
minutos ferozmente arrogantes. 
-- Olha pela janela do banheiro, vê os pinheiros,
suas agulhas escuras, apêndices cristalizados
sem serventia, onde dois vaga-lumes errantes
se perderam.
Ouve só um trem que passa, tem que passar, como uma tensão;
nada. E espera:
quem sabe agora mesmo o senhor desses minutos
não surgirá, algum estranho tranquilo, sem nenhuma arrogância,
trazendo ao coração alento. 
E os vaga-lumes, enquanto
não iluminam essas árvores de espanto
serão talvez seus olhos vivos, verde-cinza.

Four Poems: II / IV

II / Rain Towards Morning

The great light cage has broken up in the air,
freeing, I think, about a million birds
whose wild ascending shadows will not be back, 
and all the wires come falling down.
No cage, no frightening birds; the rain
is brightening now. The face is pale
that tried the puzzle of their prison
and solved it with an unexpected kiss,
whose freckled unsuspected hands alit.



II / Chuva na Madrugada

A grande gaiola de luz explodiu no ar,
libertando, creio, mais de um milhão de pássaros,
sombras que sobem, soltas, para nunca mais voltar,
e todos os fios despencam no chão.
Não há gaiola, nem pássaros assustadores; a chuva
está clareando agora. Pálido o rosto
que provou o enigma dessa prisão
e o resolveu com um beijo inesperado,
e as mãos sardentas e insuspeitas repousaram.

Four Poems: I / IV

I / Conversation

The tumult in the heart
keeps asking questions.
And then it stops and undertakes to answer
in the same tone of voice.
No one could tell the difference.

Uninnocent, these conversations start,
and then engage the senses,
only hapf-meaning to.
And then there is no choice,
and then there is no sense;

until a name
and all its connotations are the same. 



I / Conversação 

O tumulto no coração
faz um monte de perguntas.
Depois para e passa a dar respostas
no mesmo tom de voz.
Impossível ver a diferença.

Desinocentes, as conversas começam,
depois envolvem os sentidos,
meio a contragosto.
Depois não há mais escolha,
depois não há mais sentido;

até que some
a diferença entre o sentido e o nome.

domingo, 13 de abril de 2014

14

Oh, quanto me pesa
este coração, que é de pedra.
Este coração que era de asas,
de música e tempo de lágrimas.

Mas agora é sílex e quebra
qualquer dura ponta de seta.

Oh, como não me alegra
ter este coração de pedra.

Dizei por que assim me fizestes,
vós todos a quem amaria,
mas não amarei, pois sois estes
que assim me deixastes amarga,
sem asas, sem música e lágrimas,

assombrada,  triste e severa
e com meu coração de pedra.

Oh, quanto me pesa
ver meu puro amor que se quebra!
O amor que era tão forte e voava
mais que qualquer seta!

domingo, 6 de abril de 2014

Insomnia / Insônia

The moon in the bureau mirror
looks out a million miles
(and perhaps with pride, at herself,
but she never, never smiles)
far and away beyond sleep, or
perhaps she's a daytime sleeper.

By the Universe deserted,
she'd tell it to go to hell,
and she'd find a body of water,
or a mirror, on which to dwell.
So wrap up care in a cobweb
and drop it down the well

into that world inverted
where left is always right,
where the shadows are really the body,
where we stay awake all night,
where the heavens are shallow as the sea
is now deep, and you love me. 


*****************************

A lua no espelho da cômoda
está a mil milhas, ou mais
(e se olha, talvez com orgulho,
porém não sorri jamais)
muito além do sono, eu diria,
ou então só dorme de dia.

Se o Mundo a abandonasse,
ela o mandava pro inferno,
e num lago ou num espelho
faria seu lar eterno.
- Envolve em gaze e joga
tudo que te faz sofrer no

poço desse mundo inverso
onde o esquerdo é o que é o direito,
onde as sombras são os corpos,
e à noite ninguém se deita,
e o céu é raso como o oceano
é profundo, e tu me amas.


Tradução por Paulo Henriques Britto

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Canção do Caminho

Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
nem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
- Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah! Mas logo ali adiante
- tão perto! -
acaba-se a terra bela.
para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa...
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa...)

pareça e desapareça

Parece que foi ontem.
Tudo parecia alguma coisa.
O dia parecia noite.
E o vinho parecia rosas.
Até parece mentira,
tudo parecia alguma coisa.
O tempo parecia pouco,
e a gente se parecia muito.
A dor, sobretudo,
parecia prazer.
Parecer era tudo
que as coisas sabiam fazer.
O próximo, eu mesmo.
Tão fácil ser semelhante,
quando eu tinha um espelho
pra me servir de exemplo.
Mas vice-versa e vide a vida.
Nada se parece com nada.
A fita não coincide
Com a tragédia encenada.
Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem.

Praia do Caju

Escuta:
o que passou passou
e não há força
capaz de mudar isto.

Nesta tarde de férias, disponível, podes,
se quiseres, relembrar.
Mas nada acenderá de novo
o lume
que na carne das horas se perdeu.

Ah, se perdeu!
Nas águas da piscina se perdeu
sob as folhas da tarde
nas vozes conversando na varanda
no riso de Marília no vermelho
guarda-sol esquecido na calçada.

O que passou passou e, muito embora,
voltas às velhas ruas à procura.
Aqui estão as casas, a amarela,
a branca, a de azulejo, e o sol
que nelas bate é o mesmo
sol
que o Universo não mudou nestes vinte anos.

Caminhas no passado e no presente.
Aquela porta, o batente de pedra,
o cimento da calçada, até a falha do cimento. Não sabes já
se lembras, se descobres.
E com surpresa vês o poste, o muro,
a esquina, o gato na janela,
em soluços quase te perguntas
onde está o menino
igual àquele que cruza a rua agora,
franzino assim, moreno assim.
              Se tudo continua, a porta
a calçada a platibanda,
onde está o menino que também
aqui esteve? aqui nesta calçada
se sentou?

E chegas à amurada. O sol é quente
como era, a esta hora. Lá embaixo
a lama fede igual, a poça de água negra
a mesma água o mesmo
urubu pousado ao lado a mesma
lata velha que enferruja.
Entre dois braços d'água
esplende a croa do Anil. E na intensa
claridade, como sombra,
surge o menino
correndo sobre a areia. É ele, sim,
gritas teu nome: "Zeca,
Zeca!"
           Mas a distância é vasta
tão vasta que nenhuma voz alcança.

O que passou passou.
Jamais acenderás de novo
o lume
do tempo que apagou.